quinta-feira, 16 de abril de 2009

Entre a casa e a rua

No seu livro A Casa e a Rua, o antropólogo Roberto DaMatta estabeleceu as duas formas básicas como nós brasileiros percebemos o mundo. Ou estamos em casa, reinando absolutos sobre nossas vontades – e sobre o controle remoto – ou estamos “na rua” onde enfrentamos esse conjunto de eventos e pessoas que algum desavisado em antropologia há de chamar de vida – social e profissional.
Essa experiência cotidiana de pular entre a casa e o trabalho – encaixando um cineminha aqui, um restaurante ali, e um bom parque no fim de semana – pressupõe uma transição, uma passagem obrigatória pelos espaços entre os destinos públicos e privados. Esses espaços, na prática – as calçadas, os largos e praças que permeiam os grandes volumes cheios de gente – são a essência da cidade, o fator de coesão entre tantos edifícios diferentes e, não nos esqueçamos, o que os torna minimamente fotogênicos. É possível imaginar a cidade sem um “lado de fora”?
Não por acaso, os shopping centers têm ganho status a ponto de se pretender um terceiro elemento entre os edifícios e a rua. A estratégia é irônica: seus projetos apostam justamente na reprodução do mito da cidade, aquele lugar civilizado onde é possível o passeio agradável entre o café e o cinema, entre o restaurante e a praça – e ainda com escada rolante e ar condicionado de brinde.
O resultado, entretanto, é apenas cômico – a tentativa de reeditar a variedade natural da cidade geralmente resulta em um denso labirinto de lojas e serviços coloridos caleidoscopicamente até o limiar preciso da dor de cabeça. Claro, não há nada mais tedioso que um labirinto manjado. E o que atrai na cidade é justamente o fato de que todos os caminhos são validos – e certamente não terminam em uma cancela de estacionamento pago.
Mas se a experiência simulada dos shoppings está longe de reproduzir a riqueza de um passeio pela cidade, porque ele tem se sobressaído com vantagem sobre o nosso tecido urbano tradicional?
Infelizmente, a rua ainda nos massacra. Não apenas a rua dos antropólogos, aquele espaço mental onde somos lançados para enfrentar o mundo, mas também a rua dos arquitetos, onde transitar já é uma batalha em si mesma. Nada de passeio idílico ao pôr-do-sol por aqui. O buraco é mais embaixo – e mais a frente, e outro logo ali, cuidado.
Enquanto os espaços livres não forem levados tão a sério quanto os próprios edifícios, vai ser difícil mudar essa percepção. Tudo começa com uma boa calçada – que é, afinal, o principal meio de transporte de qualquer cidade. Corretamente arborizada, com lixeiras e obstáculos enfileirados não à frente, mas ao lado da área de circulação; elas poderiam liberar os pedestres do jogo da amarelinha compulsório para atividades mais contemplativas – não apenas os prédios interessantes ao redor, mas também as pessoas saindo deles, porque não?
Isso seria só o começo. Todo largo é uma sala de bate-papo em potencial, cada praça tem a sua vocação – das práticas esportivas a simples contemplação - e muitas ruas poderiam repensar suas pinturas de guerra para acolher, quem sabe, uma ciclovia. A cidade é uma só, afinal, e a rua não precisa ser necessariamente o contraponto da casa – ela poder ser também a sua extensão.

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